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Deus. Michelangelo |
Seres imaginários
povoam as crenças de quase todas as culturas do mundo, ou talvez de todas.
Existem de tantos tipos quanto nossa imaginação possa conceber. Alguns são
poderosíssimos, capazes de decidir sobre o destino da sociedade, produzir fenômenos
climáticos que auxiliem ou prejudiquem colheitas e demais atividades humanas e
mesmo seriam os responsáveis pela criação e manutenção da existência do mundo e
de tudo o que nele existe. São cultuados e temidos por seus poderes e sua
influencia em uma escala muito além de nossa capacidade. Ao serem agraciados
com homenagens e sacrifícios podem nos beneficiar e prejudicar nossos inimigos.
Podem nos castigar quando cometemos faltas e não cumprimos nossas
obrigações...
A caracterização
cultural dos deuses de diferentes povos de diferentes épocas históricas como
podemos ver acima não pode ser feita senão de maneira abrangente e geral. Não
há critérios objetivos para se diferenciar deuses de outros seres superiores e
sobrenaturais. Mas isso é relativamente pouco problemático quando se trata de
politeísmo. Nesse tipo de crença religiosa, a rigor, não há necessidade de
distinção absoluta entre os deuses e outros seres sobrenaturais. Uma distinção
possível seria o fato de que aos deuses se aplica algum tipo de culto ou temor,
pois sua influência sobre o mundo dos homens seria mais abrangente e decisiva.
Nesse sentido até mesmo pessoas mortas podem ser alçadas a condição de
divindades, algo comum entre culturas “pré-históricas”, entre os gregos antigos
e também entre católicos modernos (apesar deles se crerem monoteístas, mas
discutiremos isso mais adiante).
A origem da crença
em deuses, essa sim pode ser definida em termos objetivos. A consciência humana
é algo tão poderoso em se auto-iludir e ver significado em tudo que
acontecimentos sem explicação são tidos como fruto de intenções ocultas, de
seres aos quais não se pode ver, e cuja existência se situa acima das
limitações humanas. Essa é uma adaptação evolutiva e uma das causas da crença
em seres sobrenaturais. A origem do mundo, a chuva, o sol, a lua, a alternância
entre estações do ano, o movimento relativo dos astros no céu, as marés, as
cheias dos grandes rios, os períodos de seca, a organização política e
econômica da sociedade e toda sorte de fenômenos naturais e sociais parecia aos
olhos de nossos antepassados como sendo obra desses seres superiores.
A nossa tendência
a seguirmos líderes, outra adaptação evolutiva comum entre animais que vivem em
bandos origina a necessidade de crermos que alguns desses seres superiores são
senhores de nosso destino, os criadores da natureza, da estrutura social e das
suas regras. São os deuses do politeísmo.
Mas após milênios
de politeísmo, algumas sociedades tentaram reunir esses seres em uma só
entidade, em um só deus. Temos assim o monoteísmo. Essa tentativa de unificação
pode ocorrer por motivos variados, mas a necessidade de unificação
sócio-econômica e cultural de um ou mais povos sob o governo de uma classe
social dominante com um líder proeminente é em geral um fator importante.
Mas como veremos
há muita dificuldade em se manter o culto a um só deus, pois tendemos a criar
vários deuses e outros seres sobrenaturais para explicar e justificar
diferentes aspectos do mundo.
Em geral as
pessoas não aceitam pacificamente que seus seres fantasiosos diversificados
sejam reduzidos a um só ser fantasioso do monoteísmo governante...
No Egito antigo a
tentativa em se estabelecer o culto do deus Aton como o único foi feita sob a
tutela do faraó Amenófis IV treze séculos antes de Cristo. Estava ele
interessado obviamente em reduzir a influencia dos sacerdotes dos inúmeros
outros deuses e aumentar a sua própria sobre a população. Embora não
tenha obtido êxito em se firmar, devido principalmente a inabilidade de Amenófis
em superar a oposição dos sacerdotes dos outros deuses, essa reforma deixou uma
herança cultural que influenciou os povos da região.
Séculos depois os
persas já contavam com um sistema religioso, o zoroastrismo, que reduziu
drasticamente o numero de deuses, onde apenas dois deles tinham importância
fundamental no mundo, sendo um deus favorável a ordem e a luz e outro ao caos e
as trevas. Também os hebreus beberam dessa fonte. O estabelecimento do culto
único a Javé entre os hebreus (que antes eram politeístas) foi uma unificação
cultural e uma forma de resistência ás outras potencia militares do Oriente
médio da época. Mas novamente essa experiência teria se limitado a esse povo se
não fosse pela aceitação dessas ideia pelo maior império da antiguidade, Roma.
E isso mudou tudo.
Monoteísmo
e sociedades centralizadas e dominadoras
O estabelecimento
de uma variante do monoteísmo hebraico, o cristianismo, pelo imperador
Constantino como a religião única do Império Romano foi uma tentativa
desesperada de se conter o desmantelamento da estrutura sócio-econômica e
cultural do Império Romano e obteve êxito em alguns pontos fundamentais.
Apesar de se
considerar que a parte ocidental do império ruiu no século V, a cultura e
formas de organização social preservadas pelo monoteísmo acabaram por
influenciar os povos germânicos que se estabeleceram dentro das antigas
fronteiras romanas. Em poucos séculos praticamente todos os povos germânicos já
haviam se convertido a nova religião sob as ordens de reis que viram a utilidade
do monoteísmo como unificador sócio cultural e facilitador
do domínio de uma autoridade sobre o conjunto da população... A
formação dos reinos europeus medievais se deu sob a tutela da ideia
da religião monoteísta. A Europa moderna nasceu sob a influencia
dessa ideia e a difundiu pelo mundo.
Com a enorme
influencia da Europa a partir das grandes navegações do século XV ocorreu a
“exportação do monoteísmo” a todos os outros continentes e inúmeros povos de
todo o planeta, a ponto do monoteísmo ter se tornado hegemônico em varias
regiões e culturas do mundo. Essa dominação da crença em um deus único sobre o
mundo todo é mostrada de forma inteligentemente irônica, por Saramago em O
evangelho de Jesus Cristo. No romance, Jesus é apenas um instrumento (e não um
filho) que Javé usa para deixar de ser um pequeno deus do deserto e se tornar o
deus mais influente do mundo...
Na Península
Arábica ocorreu outro grande exemplo da utilidade do monoteísmo em unificar
povos sob a tutela de impérios. Os árabes criaram a sua variante do monoteísmo
hebreu, o islã e usaram essa ideia para unificar inúmeros povos da Ásia, África
e mesmo de regiões da Europa.
Resumidamente
vimos como as crenças de um povo do deserto acabaram dominando no mundo atual
bilhões de pessoas por terem sido úteis, aceitas e difundidas por grandes
impérios do passado.
Monoteísmo, no
entanto não é um termo exato devido à dificuldade em se determinar o que é um
deus único e negar o status divino a outros seres sobrenaturais.
Nos mitos bíblicos,
Javé usa de emissários (anjos) para agir entre os seres humanos e não nega a
existência de outros deuses, apenas proíbe os hebreus de lhes cultuar. Disputa
com o diabo a influencia sobre Jó e ao menos uma vez é sobrepujada pelo diabo
na influencia sobre o rei Davi. Também no islã o deus único Alá conta com o
auxílio e oposição de seres sobrenaturais como os djins. Mas é no cristianismo
que a herança do politeísmo se mostra mais claramente devido a influencia greco-romana
sobre a região da palestina da época em que ele foi criado.
Jesus é uma
divindade ao estilo grego, filho de um deus com uma mortal. Há um deus
“espírito santo” e o deus criador, o pai, que apesar de ser identificado com
Javé não demonstra a arrogância e a crueldade típica desse deus em passagens
anteriores da bíblia. Tentativas de se unificar esses três deuses esbarram no
fato de que só o deus pai dispõe de informações tais como quando será o fim dos
tempos, informação que Jesus, não possui... E o cristianismo, que já nasceu
influenciado pelo politeísmo grego seguiu nossa tendência a divinizar a tudo e
a todos, elevando mais e mais seres sobrenaturais ao status de deuses.
Ao se firmar como
Igreja católica no fim do Império Romano, estabeleceu o culto a divindades
menores; em geral heróis e mártires mortos. Entre os gregos eram chamados
semideuses, entre os católicos são os santos. Católicos tentam negar o fato de
que santos são deuses, mas continuam pedindo a eles curas de doenças, boas
colheitas, vitórias em competições de todo tipo, sucesso profissional,
casamentos, chuvas e tudo o mais que outros povos politeístas pedem aos seus
deuses...
Grupos
minoritários de cristãos, em especial os pentecostais (evangélicos) dizem se
opuser a influência do politeísmo, mas aceitam a já citada caracterização de
Deus como sendo três pessoas e apontam a ação do diabo como tão grande sobre o
mundo que fica impossível não o caracterizar como um deus e aqui é preciso
enfatizar um ponto. Um deus não é necessariamente bom, é apenas um ser
sobrenatural a que se rende um culto ou ao qual se tem temor devido a sua
grande influencia sobre o mundo. Difícil caracterizar Javé como sendo bom
quando sabemos que ele matou inúmeras pessoas por motivos banais tais como
homossexualidade, consumo de sangue e carne de porco e sexo fora do
casamento... E ainda as condena a tortura eterna no inferno...
O que temos entre
os pentecostais e outros grupos cristãos minoritários é um deus criador do
mundo que atualmente pouco age sobre a sociedade humana. Ações mais
significativas e benéficas sobre as pessoas são efetuadas pelo deus filho,
Jesus, mas só em quem o aceita por meio de uma cerimônia publica chamada
batismo. A esses ele concede bens materiais e vida eterna. É um deus
exclusivista que nega tudo a quem não o adora. Agindo sobre as pessoas de forma
maléfica, temos um deus corruptor, o diabo, que não discrimina ninguém, não
precisa ser aceito para que influencie a sociedade, governos e tudo o mais que
seja humano. Nas crenças dos grupos evangélicos o diabo é o deus mais atuante,
pois não se impõe restrições...
É muito difícil,
ou talvez impossível se estabelecer um culto realmente monoteísta, ficando tudo
apenas na base da “restrição ao exagero do numero de deuses”, e talvez seja
apenas essa a necessidade. Na pratica pouco importa se o numero de deuses seja
apenas um ou dois ou três. O que se tenta evitar é a divisão cultural da
sociedade própria do politeísmo com seus inúmeros deuses. Impérios e outras
sociedades centralizadas precisam que uma vontade geral e unificada seja aceita
pela população e um bom jeito de se obter isso sempre foi à religião. No
passado distante a nossa espécie se dividia em pequenas tribos, cada uma com
seu próprio conjunto de crenças.
Unificação de
crenças é uma necessidade quando ocorre à unificação de tribos em comunidades
maiores, sociedades mais complexas, impérios... É comum que os deuses das
sociedades dominadas sejam suprimidos ou inferiorizados em relação ao deus da
sociedade dominante. O cristianismo fez isso com os deuses anteriormente cultuados
no império romano. O islã o fez com os da península arábica, os do norte da
África e do sul da Ásia. O catolicismo agiu assim com todos os povos dominados
pelos europeus por praticamente todos os continentes, em especial a América
latina.
Atualmente os
pentecostais reprimem o culto aos deuses de origem africana e indígena da
umbanda e demais crenças politeístas outrora tão comuns nas periferias dos
grandes centros brasileiros... Também estão agindo assim entre populações
indígenas, trocando os mitos politeístas pelo mito monoteísta cristão. Carl
Sagan afirma em o mundo assombrado pelos demônios que o monoteísmo é próprio de
povos mais agressivos e que dominam outros. Ele está correto e os motivos foram
explicitados acima. A dominação de uma cultura sobre outras é o que se esconde
muitas vezes por trás da substituição do politeísmo pelo monoteísmo.