domingo, 8 de junho de 2014

Monoteísmo


Deus. Michelangelo
Seres imaginários povoam as crenças de quase todas as culturas do mundo, ou talvez de todas. Existem de tantos tipos quanto nossa imaginação possa conceber. Alguns são poderosíssimos, capazes de decidir sobre o destino da sociedade, produzir fenômenos climáticos que auxiliem ou prejudiquem colheitas e demais atividades humanas e mesmo seriam os responsáveis pela criação e manutenção da existência do mundo e de tudo o que nele existe. São cultuados e temidos por seus poderes e sua influencia em uma escala muito além de nossa capacidade. Ao serem agraciados com homenagens e sacrifícios podem nos beneficiar e prejudicar nossos inimigos. Podem nos castigar quando cometemos faltas e não cumprimos nossas obrigações... 

A caracterização cultural dos deuses de diferentes povos de diferentes épocas históricas como podemos ver acima não pode ser feita senão de maneira abrangente e geral. Não há critérios objetivos para se diferenciar deuses de outros seres superiores e sobrenaturais. Mas isso é relativamente pouco problemático quando se trata de politeísmo. Nesse tipo de crença religiosa, a rigor, não há necessidade de distinção absoluta entre os deuses e outros seres sobrenaturais. Uma distinção possível seria o fato de que aos deuses se aplica algum tipo de culto ou temor, pois sua influência sobre o mundo dos homens seria mais abrangente e decisiva. Nesse sentido até mesmo pessoas mortas podem ser alçadas a condição de divindades, algo comum entre culturas “pré-históricas”, entre os gregos antigos e também entre católicos modernos (apesar deles se crerem monoteístas, mas discutiremos isso mais adiante).

A origem da crença em deuses, essa sim pode ser definida em termos objetivos. A consciência humana é algo tão poderoso em se auto-iludir e ver significado em tudo que acontecimentos sem explicação são tidos como fruto de intenções ocultas, de seres aos quais não se pode ver, e cuja existência se situa acima das limitações humanas. Essa é uma adaptação evolutiva e uma das causas da crença em seres sobrenaturais. A origem do mundo, a chuva, o sol, a lua, a alternância entre estações do ano, o movimento relativo dos astros no céu, as marés, as cheias dos grandes rios, os períodos de seca, a organização política e econômica da sociedade e toda sorte de fenômenos naturais e sociais parecia aos olhos de nossos antepassados como sendo obra desses seres superiores. 

A nossa tendência a seguirmos líderes, outra adaptação evolutiva comum entre animais que vivem em bandos origina a necessidade de crermos que alguns desses seres superiores são senhores de nosso destino, os criadores da natureza, da estrutura social e das suas regras. São os deuses do politeísmo. 

Mas após milênios de politeísmo, algumas sociedades tentaram reunir esses seres em uma só entidade, em um só deus. Temos assim o monoteísmo. Essa tentativa de unificação pode ocorrer por motivos variados, mas a necessidade de unificação sócio-econômica e cultural de um ou mais povos sob o governo de uma classe social dominante com um líder proeminente é em geral um fator importante. 

Mas como veremos há muita dificuldade em se manter o culto a um só deus, pois tendemos a criar vários deuses e outros seres sobrenaturais para explicar e justificar diferentes aspectos do mundo. 

Em geral as pessoas não aceitam pacificamente que seus seres fantasiosos diversificados sejam reduzidos a um só ser fantasioso do monoteísmo governante... 

No Egito antigo a tentativa em se estabelecer o culto do deus Aton como o único foi feita sob a tutela do faraó Amenófis IV treze séculos antes de Cristo. Estava ele interessado obviamente em reduzir a influencia dos sacerdotes dos inúmeros outros deuses e aumentar a sua própria sobre a população. Embora não tenha obtido êxito em se firmar, devido principalmente a inabilidade de Amenófis em superar a oposição dos sacerdotes dos outros deuses, essa reforma deixou uma herança cultural que influenciou os povos da região. 

Séculos depois os persas já contavam com um sistema religioso, o zoroastrismo, que reduziu drasticamente o numero de deuses, onde apenas dois deles tinham importância fundamental no mundo, sendo um deus favorável a ordem e a luz e outro ao caos e as trevas. Também os hebreus beberam dessa fonte. O estabelecimento do culto único a Javé entre os hebreus (que antes eram politeístas) foi uma unificação cultural e uma forma de resistência ás outras potencia militares do Oriente médio da época. Mas novamente essa experiência teria se limitado a esse povo se não fosse pela aceitação dessas ideia pelo maior império da antiguidade, Roma. E isso mudou tudo.

Monoteísmo e sociedades centralizadas e dominadoras

O estabelecimento de uma variante do monoteísmo hebraico, o cristianismo, pelo imperador Constantino como a religião única do Império Romano foi uma tentativa desesperada de se conter o desmantelamento da estrutura sócio-econômica e cultural do Império Romano e obteve êxito em alguns pontos fundamentais. 

Apesar de se considerar que a parte ocidental do império ruiu no século V, a cultura e formas de organização social preservadas pelo monoteísmo acabaram por influenciar os povos germânicos que se estabeleceram dentro das antigas fronteiras romanas. Em poucos séculos praticamente todos os povos germânicos já haviam se convertido a nova religião sob as ordens de reis que viram a utilidade do monoteísmo como unificador sócio cultural e facilitador do domínio de uma autoridade sobre o conjunto da população... A formação dos reinos europeus medievais se deu sob a tutela da ideia da religião monoteísta. A Europa moderna nasceu sob a influencia dessa ideia e a difundiu pelo mundo.

Com a enorme influencia da Europa a partir das grandes navegações do século XV ocorreu a “exportação do monoteísmo” a todos os outros continentes e inúmeros povos de todo o planeta, a ponto do monoteísmo ter se tornado hegemônico em varias regiões e culturas do mundo. Essa dominação da crença em um deus único sobre o mundo todo é mostrada de forma inteligentemente irônica, por Saramago em O evangelho de Jesus Cristo. No romance, Jesus é apenas um instrumento (e não um filho) que Javé usa para deixar de ser um pequeno deus do deserto e se tornar o deus mais influente do mundo...

Na Península Arábica ocorreu outro grande exemplo da utilidade do monoteísmo em unificar povos sob a tutela de impérios. Os árabes criaram a sua variante do monoteísmo hebreu, o islã e usaram essa ideia para unificar inúmeros povos da Ásia, África e mesmo de regiões da Europa. 

Resumidamente vimos como as crenças de um povo do deserto acabaram dominando no mundo atual bilhões de pessoas por terem sido úteis, aceitas e difundidas por grandes impérios do passado. 
Monoteísmo, no entanto não é um termo exato devido à dificuldade em se determinar o que é um deus único e negar o status divino a outros seres sobrenaturais. 

Nos mitos bíblicos, Javé usa de emissários (anjos) para agir entre os seres humanos e não nega a existência de outros deuses, apenas proíbe os hebreus de lhes cultuar. Disputa com o diabo a influencia sobre Jó e ao menos uma vez é sobrepujada pelo diabo na influencia sobre o rei Davi. Também no islã o deus único Alá conta com o auxílio e oposição de seres sobrenaturais como os djins. Mas é no cristianismo que a herança do politeísmo se mostra mais claramente devido a influencia greco-romana sobre a região da palestina da época em que ele foi criado.

Jesus é uma divindade ao estilo grego, filho de um deus com uma mortal. Há um deus “espírito santo” e o deus criador, o pai, que apesar de ser identificado com Javé não demonstra a arrogância e a crueldade típica desse deus em passagens anteriores da bíblia. Tentativas de se unificar esses três deuses esbarram no fato de que só o deus pai dispõe de informações tais como quando será o fim dos tempos, informação que Jesus, não possui... E o cristianismo, que já nasceu influenciado pelo politeísmo grego seguiu nossa tendência a divinizar a tudo e a todos, elevando mais e mais seres sobrenaturais ao status de deuses. 

Ao se firmar como Igreja católica no fim do Império Romano, estabeleceu o culto a divindades menores; em geral heróis e mártires mortos. Entre os gregos eram chamados semideuses, entre os católicos são os santos. Católicos tentam negar o fato de que santos são deuses, mas continuam pedindo a eles curas de doenças, boas colheitas, vitórias em competições de todo tipo, sucesso profissional, casamentos, chuvas e tudo o mais que outros povos politeístas pedem aos seus deuses... 

Grupos minoritários de cristãos, em especial os pentecostais (evangélicos) dizem se opuser a influência do politeísmo, mas aceitam a já citada caracterização de Deus como sendo três pessoas e apontam a ação do diabo como tão grande sobre o mundo que fica impossível não o caracterizar como um deus e aqui é preciso enfatizar um ponto. Um deus não é necessariamente bom, é apenas um ser sobrenatural a que se rende um culto ou ao qual se tem temor devido a sua grande influencia sobre o mundo. Difícil caracterizar Javé como sendo bom quando sabemos que ele matou inúmeras pessoas por motivos banais tais como homossexualidade, consumo de sangue e carne de porco e sexo fora do casamento... E ainda as condena a tortura eterna no inferno... 

O que temos entre os pentecostais e outros grupos cristãos minoritários é um deus criador do mundo que atualmente pouco age sobre a sociedade humana. Ações mais significativas e benéficas sobre as pessoas são efetuadas pelo deus filho, Jesus, mas só em quem o aceita por meio de uma cerimônia publica chamada batismo. A esses ele concede bens materiais e vida eterna. É um deus exclusivista que nega tudo a quem não o adora. Agindo sobre as pessoas de forma maléfica, temos um deus corruptor, o diabo, que não discrimina ninguém, não precisa ser aceito para que influencie a sociedade, governos e tudo o mais que seja humano. Nas crenças dos grupos evangélicos o diabo é o deus mais atuante, pois não se impõe restrições... 

É muito difícil, ou talvez impossível se estabelecer um culto realmente monoteísta, ficando tudo apenas na base da “restrição ao exagero do numero de deuses”, e talvez seja apenas essa a necessidade. Na pratica pouco importa se o numero de deuses seja apenas um ou dois ou três. O que se tenta evitar é a divisão cultural da sociedade própria do politeísmo com seus inúmeros deuses. Impérios e outras sociedades centralizadas precisam que uma vontade geral e unificada seja aceita pela população e um bom jeito de se obter isso sempre foi à religião. No passado distante a nossa espécie se dividia em pequenas tribos, cada uma com seu próprio conjunto de crenças. 

Unificação de crenças é uma necessidade quando ocorre à unificação de tribos em comunidades maiores, sociedades mais complexas, impérios... É comum que os deuses das sociedades dominadas sejam suprimidos ou inferiorizados em relação ao deus da sociedade dominante. O cristianismo fez isso com os deuses anteriormente cultuados no império romano. O islã o fez com os da península arábica, os do norte da África e do sul da Ásia. O catolicismo agiu assim com todos os povos dominados pelos europeus por praticamente todos os continentes, em especial a América latina. 

Atualmente os pentecostais reprimem o culto aos deuses de origem africana e indígena da umbanda e demais crenças politeístas outrora tão comuns nas periferias dos grandes centros brasileiros... Também estão agindo assim entre populações indígenas, trocando os mitos politeístas pelo mito monoteísta cristão. Carl Sagan afirma em o mundo assombrado pelos demônios que o monoteísmo é próprio de povos mais agressivos e que dominam outros. Ele está correto e os motivos foram explicitados acima. A dominação de uma cultura sobre outras é o que se esconde muitas vezes por trás da substituição do politeísmo pelo monoteísmo.